Apenas minhas letras insanas...

domingo, 16 de novembro de 2014

Alegria, alegria..






O sal.
Arrebentavam nas pedras, as ondas.
O sol.
Ardia, purificava.
E uma alegria bendita, profunda, alumiava tudo à sua volta.
Alimento perene.
Oxigênio.
Vida.

Toma, leva contigo por onde fores.
Reparte.
E multiplica.

Bendito seja o fruto do teu sorriso.





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domingo, 6 de julho de 2014

Olhando o mundo, da varanda.




Ela desce, correndo, a ladeira.
Os cabelos longos, lisos, soltos.
Dourados, quase mel.
Bailam de um lado para o outro,
Brilhando intensamente sob o Sol.
Bela imagem, logo cedo, belo presente
Para começar bem o dia!




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quarta-feira, 25 de junho de 2014

Renovação



Limpou as gavetas
Rasgou as cartas
Secou as lágrimas
Varreu o chão
Abriu as janelas
Respirou

Cortou os cabelos
Cortou os vínculos
Tirou os sapatos
Botou o vestido
Andou na terra
Desfrutou

Escreveu o livro
Plantou a árvore
Libertou o filho
Descobriu seu mundo
Buscou o sonho
Ressurgiu




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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Pagodeira

  O cabelo pintado de vermelho combinava com a mesinha do bar. A blusa colada, decote canoa, ressaltava as gorduras e oprimia os seios. O cinto preto e largo não cumpria a sua missão e ainda causava um certo desconforto.
  Cantava um pagode. Balançava a cabeça, rebolava sentada, sacudia os ombros.
  Sorria seu melhor sorriso, usava seu melhor batom. O cabelo domado a qualquer custo balançava o quanto podia. Menos do que ela esperava, menos do que ela queria.
  Olhava de tempos em tempos para o homem atrás do balcão, esperando e pedindo por alguma aprovação. Não que muita diferença fizesse, só pedia um olhar solidário.
  O suor brotava na testa, escorria miúdo num fio no meio das costas. A cólica apertava e dava nó nas entranhas num vai e vem diabólico. Lembrando-lhe a cada investida que a calça de lycra branca não fora a melhor escolha.
  Demonstrava alegria, confiança. Irradiava uma luz que na verdade não existia, mas só ela sabia.
  Voltou para a casa como sempre fazia.
  Fatinha canta que é uma beleza! Essa aí quer ser cantora...
  Ferveu três folhas de louro, coou e adoçou com bastante açúcar. Tomou o líquido quente rezando por algum alívio, algum conforto.
  Pensou em beijar os meninos antes de se deitar, mas contentou-se em olhar para eles através da fina cortina que separava o pequeno quarto da cozinha que também era sala e que virava o seu próprio quarto quando o sofá-cama vermelho lhe abrigava o corpo todas as noites.
  Vestiu uma camisola e deitou-se ainda sem sono. A chuva desabou de repente. O vento forte castigava os telhados precários, derrubava os varais. Mas ela não se importava, não mais. Olhava para a pequena janela que acendia e apagava ao sabor dos clarões provocados pelos raios que caíam ferozes.
  E o barulho dos trovões cada vez mais fortes e os relâmpagos cada vez mais luminosos e intensos, meu Deus! Quanta beleza...
  A água batia com força, uma força brutal. E suas lágrimas escorriam tão tímidas...
  Foi tudo tão rápido. Não teve tempo para se arrepender de nada. Não teve tempo para chorar por sua mãe que tanto lhe pedia para sair daquele morro. Não teve tempo de correr para os seus meninos.
  Só teve tempo para um último clarão, seu palco iluminado.
  E então, finalmente, cantou.



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domingo, 9 de fevereiro de 2014

Laços















  Subiu lentamente os degraus empoeirados. O corrimão dourado, finamente trabalhado, trazia entre seus entalhes delicadas teias tecidas por aranhas que reinavam por ali há muito tempo.
  A vastidão do salão que observava do alto da escada lhe tirava o fôlego. O silêncio quase absoluto, a escuridão parcial que dava aos móveis uma aura tão dramática, tudo a fascinava. As pratarias, as porcelanas, os quadros... Ninguém ousara tirar uma só agulha do lugar. E tudo parecia estar suspenso, intocado.
  Caminhou pelo corredor, tantas portas! Altas, majestosas. Sabia exatamente qual delas deveria abrir.
  Com o coração acelerado, fervendo de excitação girou a maçaneta fechando os olhos. Sentiu o cheiro, almiscarado. Abriu os olhos já marejados e, então, o viu. Sorriu enquanto chorava. Cobriu a boca com uma das mãos tentando, em vão, conter os soluços. E ele a olhava, terno, sapiente. Tão lindo! Deus, tão lindo.       Ela não sabia que felicidade podia doer tanto. Como seu peito apertava, o ar lhe faltava. As pernas tremiam enquanto ela se aproximava dele, que a esperava.
  Chegou perto o suficiente para, finalmente, tocá-lo. Aqueles olhos que ela conhecia tão bem, aquela boca que ela tanto beijara sem nunca ter sentido o seu gosto.
  Acariciou o rosto amado com tanta delicadeza, tanta ternura. Tanto cuidado.
  Ficou por muito tempo ali, à sua frente. Sorvendo cada detalhe daqueles traços tão harmoniosos, perfeitos. Deitou-se, então, na bela cama tão fria. Extasiada, adormeceu docemente emprestando seu calor às cobertas de seda.
  E ele, que a observava tão sereno, eternizado em seu autorretrato há quase um século, sabia que sua espera, por fim, acabara.



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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os outros



Ouvi a gritaria enquanto ajeitava umas roupas na gaveta.  Da janela a vi atravessando a avenida. Agarrei o parapeito e prendi a respiração como, se assim, pudesse evitar que algum carro a pegasse. Ela andava no meio da rua sem se preocupar com o trânsito e, anjos, talvez a cercassem naquele momento numa corrente protetora que a abandonaria no instante seguinte jogando-a de volta à sua rotina infernal.  Anjos cínicos...
Ela chorava e gritava “você”!  E apontava o dedo para qualquer um que passasse por ela e dizia “foi você”! 
E os outros que são sempre os outros desviavam do seu caminho.  Alguns se riam dela, ora um riso nervoso, ora debochado.  Havia ainda os que fingiam que não a viam, simplesmente não olhavam. 
E ela continuou caminhando pela calçada, levando consigo um saco de pano com suas tralhas. Sempre gritando e chorando, parando de tempos em tempos, virando-se para todos os lados, dedo em riste, procurando.
Nunca o conceito de solidão me foi tão claro.
Fiquei na janela até perdê-la de vista, até não mais poder ouvi-la. 
Voltei para a minha arrumação.  Abri a porta do armário e me deparei com o espelho. Grande, cristalino, tão bonito.  Encarei meus próprios olhos, mas desviei segundos depois.  Sabia muito bem por quem ela procurava.
Os outros são sempre os outros...



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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Os Cheiros de Narcisa



Joana pediu a Narcisa que lhe fizesse um vestido verde. Adoro verde! É a cor da esperança! Narcisa deu um sorrisinho maroto e disse:
- Esperança tem cheiro de terra molhada de chuva.
Narcisa tinha mania de botar cheiro em tudo.
O amor tem cheiro de morango miudinho, dizia. A ternura cheirava à baunilha.
Para ela a raiva tinha cheiro de amoníaco. E o rancor cheirava a sebo.
A alegria, para Narcisa, tinha cheiro de pipoca estourando, quentinha.
O tédio cheirava à roupa velha, esquecida no fundo da gaveta.
E a inveja, dizia Narcisa, exalava um forte odor de carniça.
A tristeza tinha cheiro de rosa murcha e a saudade cheirava a lírio.
Liberdade tinha cheiro de maresia. O apego, cheiro de pão bolorento.
E assim Narcisa passou pela vida, cosendo vestidos de renda, perfumando o caminho dos outros.
    Quando chegou aos noventa e dois anos Narcisa se foi desse mundo. E ninguém nunca conseguiu explicar porque, em meio a tantas e diversas flores que lhe cobriam o corpo dentro do caixão, dele se desprendia  um doce e intenso aroma de alecrim.

   É que nenhum deles sabia que esse é o cheiro do céu. 



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