Ouvi a gritaria enquanto ajeitava umas roupas na gaveta. Da janela a vi atravessando a avenida. Agarrei o parapeito e prendi a respiração como, se assim, pudesse evitar que algum carro a pegasse. Ela andava no meio da rua sem se preocupar com o trânsito e, anjos, talvez a cercassem naquele momento numa corrente protetora que a abandonaria no instante seguinte jogando-a de volta à sua rotina infernal. Anjos cínicos...
Ela chorava e gritava “você”! E apontava o dedo para qualquer um que
passasse por ela e dizia “foi você”!
E os outros que são sempre os outros desviavam do seu
caminho. Alguns se riam dela, ora um
riso nervoso, ora debochado. Havia ainda
os que fingiam que não a viam, simplesmente não olhavam.
E ela continuou caminhando pela calçada, levando consigo um
saco de pano com suas tralhas. Sempre gritando e chorando, parando de tempos em
tempos, virando-se para todos os lados, dedo em riste, procurando.
Nunca o conceito de solidão me foi tão claro.
Fiquei na janela até perdê-la de vista, até não mais poder
ouvi-la.
Voltei para a minha arrumação. Abri a porta do armário e me deparei com o
espelho. Grande, cristalino, tão bonito. Encarei meus próprios olhos, mas desviei segundos
depois. Sabia muito bem por quem ela
procurava.
Os outros são sempre os outros...
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