Apenas minhas letras insanas...

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os outros



Ouvi a gritaria enquanto ajeitava umas roupas na gaveta.  Da janela a vi atravessando a avenida. Agarrei o parapeito e prendi a respiração como, se assim, pudesse evitar que algum carro a pegasse. Ela andava no meio da rua sem se preocupar com o trânsito e, anjos, talvez a cercassem naquele momento numa corrente protetora que a abandonaria no instante seguinte jogando-a de volta à sua rotina infernal.  Anjos cínicos...
Ela chorava e gritava “você”!  E apontava o dedo para qualquer um que passasse por ela e dizia “foi você”! 
E os outros que são sempre os outros desviavam do seu caminho.  Alguns se riam dela, ora um riso nervoso, ora debochado.  Havia ainda os que fingiam que não a viam, simplesmente não olhavam. 
E ela continuou caminhando pela calçada, levando consigo um saco de pano com suas tralhas. Sempre gritando e chorando, parando de tempos em tempos, virando-se para todos os lados, dedo em riste, procurando.
Nunca o conceito de solidão me foi tão claro.
Fiquei na janela até perdê-la de vista, até não mais poder ouvi-la. 
Voltei para a minha arrumação.  Abri a porta do armário e me deparei com o espelho. Grande, cristalino, tão bonito.  Encarei meus próprios olhos, mas desviei segundos depois.  Sabia muito bem por quem ela procurava.
Os outros são sempre os outros...



***




quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Os Cheiros de Narcisa



Joana pediu a Narcisa que lhe fizesse um vestido verde. Adoro verde! É a cor da esperança! Narcisa deu um sorrisinho maroto e disse:
- Esperança tem cheiro de terra molhada de chuva.
Narcisa tinha mania de botar cheiro em tudo.
O amor tem cheiro de morango miudinho, dizia. A ternura cheirava à baunilha.
Para ela a raiva tinha cheiro de amoníaco. E o rancor cheirava a sebo.
A alegria, para Narcisa, tinha cheiro de pipoca estourando, quentinha.
O tédio cheirava à roupa velha, esquecida no fundo da gaveta.
E a inveja, dizia Narcisa, exalava um forte odor de carniça.
A tristeza tinha cheiro de rosa murcha e a saudade cheirava a lírio.
Liberdade tinha cheiro de maresia. O apego, cheiro de pão bolorento.
E assim Narcisa passou pela vida, cosendo vestidos de renda, perfumando o caminho dos outros.
    Quando chegou aos noventa e dois anos Narcisa se foi desse mundo. E ninguém nunca conseguiu explicar porque, em meio a tantas e diversas flores que lhe cobriam o corpo dentro do caixão, dele se desprendia  um doce e intenso aroma de alecrim.

   É que nenhum deles sabia que esse é o cheiro do céu. 



***